EUA, CANADÁ E FRANÇA CONSPIRARAM ABERTAMENTE PARA DERRUBAR O GOVERNO ELEITO DO HAITI
Folha de São Paulo 19/01/2010 Tendências/Debates
MARK WEISBROT
Os EUA, ao lado de Canadá e a França, conspiraram abertamente durante
quatro anos para derrubar o governo eleito do Haiti
MUITO TEMPO antes do terremoto, a situação do Haiti já era comparável
à de muitos sem-teto nas ruas de grandes cidades dos EUA: pobres
demais e negros demais para ter os mesmos direitos concretos que
outros cidadãos.
Em 2002, quando um golpe militar que teve o apoio dos EUA afastou
temporariamente o governo eleito da Venezuela, a maioria dos governos
no hemisfério reagiu rapidamente e ajudou a forçar o retorno do
governo democrático. Mas, dois anos mais tarde, quando o presidente
haitiano democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, foi
sequestrado pelos Estados Unidos e levado de avião para o exílio na
África, a reação foi fraca.
Diferentemente dos dois séculos de saque e pilhagem do Haiti desde sua
fundação graças a uma revolta de escravos em 1804, da ocupação brutal
por fuzileiros navais dos EUA entre 1915 e 1934 e das incontáveis
atrocidades cometidas sob ditaduras auxiliadas e apoiadas por
Washington, o golpe de 2004 não pode ser relegado ao esquecimento,
visto como nada mais que “história antiga”. Aconteceu há apenas seis
anos e é diretamente relacionado ao esforço de ajuda e reconstrução
que o presidente Obama está propondo agora.
Os Estados Unidos, ao lado de Canadá e a França, conspiraram
abertamente durante quatro anos para derrubar o governo eleito do
Haiti, cortando quase toda a ajuda internacional ao país com o
objetivo de destruir sua economia e torná-lo ingovernável. Eles
conseguiram.
Para aqueles que se indagam por que não existem instituições governamentais haitianas para ajudar com os esforços de socorro e ajuda às vítimas do terremoto, essa é uma das grandes razões. Ou o porquê de haver 3 milhões de pessoas amontoadas na área atingida pelo terremoto.
A política dos EUA ao longo dos anos também ajudou a destruir a
agricultura haitiana, por exemplo, ao forçar a importação de arroz
americano subsidiado e eliminar milhares de plantadores de arroz
haitianos.
O primeiro governo democrático de Aristide foi derrubado após apenas
sete meses, em 1991, por oficiais militares e esquadrões da morte que,
mais tarde, se descobriu estarem a soldo da Agência Central de
Inteligência dos EUA. Agora Aristide quer retornar a seu país, algo
que a maioria dos haitianos reivindica desde sua derrubada.
Mas os EUA não o querem ali. E o governo Preval, que é completamente
dependente de Washington, decidiu que o partido de Aristide - o maior
do Haiti - não será autorizado a concorrer nas próximas eleições
(previstas originalmente para fevereiro).
O medo que Washington tem da democracia no Haiti talvez explique o
porquê de os Estados Unidos agora estarem enviando 10 mil soldados e
priorizando a “segurança”, em lugar das necessidades de vida ou morte
dos milhares de pessoas que precisam de atendimento médico urgente.
Na manhã de domingo, o mundialmente renomado grupo humanitário Médicos Sem Fronteiras queixou-se que um avião transportando sua unidade hospitalar móvel foi obrigado pelos militares americanos a mudar de rota, passando primeiramente pela República Dominicana. Isso custaria 24 horas cruciais e um número desconhecido de vidas.
Essa ocupação militar por tropas dos EUA vai suscitar outras
preocupações no hemisfério, dependendo de quanto tempo elas
permanecerem - assim modo como a ampliação recente da presença militar
dos Estados Unidos na Colômbia vem sendo recebida com insatisfação e
desconfiança consideráveis.
Organizações não governamentais vêm levantando outras questões sobre a reconstrução proposta: compreensivelmente, querem que a dívida
remanescente do Haiti seja cancelada e que sejam feitas doações ao
país, e não empréstimos (o FMI propôs um empréstimo de US$ 100
milhões). As necessidades da reconstrução chegarão a bilhões de
dólares.
Será que Washington vai incentivar o estabelecimento de um governo que
funcione? Ou vai impedi-lo, canalizando a assistência por meio de ONGs
e assumindo ele próprio várias outras funções, devido a sua oposição
de longa data à autonomia do Haiti?
O Brasil não segue a linha de Washington na América do Sul nem, mais
recentemente, o fez em Honduras, “quintal” dos Estados Unidos - onde o
governo brasileiro defendeu em vão a restauração da democracia após o
golpe de 28 de junho, e a administração Obama, não.
Por que não defender a democracia também para o Haiti, mesmo que Washington seja contra?
MARK WEISBROT, doutor em economia pela Universidade de Michigan, é
codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington
( www.cepr.net ). Tradução de Clara Allain .
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