terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

JOANA, POR VERÍSSIMO...


JOANA, POR VERÍSSIMO...





"Aquela criaturinha que ali vai cantando é a menina Joana. Olhem só como ela caminha resoluta, como tem os passos largos... Seus pés descalços parecem duas pombas brancas que vão pulando por cima das pedras do caminho.
A manhã é de sol. A primavera chegou a semana passada. O perfume dos prados viaja montado no vento. Nos bosques há lobos ferozes mas também existem lindas árvores floridas.
Joana caminha. Vai à casa de Hauviette, sua amiguinha, que mora perto da colina. Joana canta porque está contente da vida. A vida é boa.
Papai e mamãe vivem em paz. Os irmãozinhos vão à escola de Maxey, aldeia que fica do outro lado do rio. A primavera encheu de rosas brancas e vermelhas o jardim lá de casa. As vacas engordam. Os porcos chapinham na lama e grunhem de satisfação. O burrinho peludo sacode as orelhas e zurra de alegria quando Joana lhe vai levar água e feno. Os vizinhos são bons. E os melhores vizinhos do mundo são os santos da igreja que fica perto da casa de Joana: para ver santa Catarina ou santa Margarida basta a gente atravessar o pequeno cemitério...
Sim, a vida é boa. Por isso Joana caminha cantando.
Já avista a casa de Hauviette, com o seu telhado de pedra e sua chaminé fumegando. Fumegando... Decerto já estão fazendo bolos para o almoço.
Joana agora para à beira do rio. Este é o Mosa. Um rio muito comprido que vem de terras distantes e vai para terras distantes.
Joana olha a água clara. A gente pode enxergar os peixes que passam no fundo. O Mosa é um rio bonito. Joana lhe quer um bem muito grande porque quando ela era pequenina ouvia sempre de seu berço o marulho macio das águas, que era uma música de nina-nana. Depois ela cresceu vendo todos os dias o rio amigo. No inverno — engraçado! — o rio crescia mas ficava triste porque espelhava céus cinzentos cheios de nuvens de chuva. Mas quando vinha a primavera o Mosa tornava a ficar alegre, as suas águas eram azuis como o céu e se enfeitavam de pingos dourados de sol. Brotavam jardins nas margens. Jardins como o que agora Joana está vendo.
Que lindo! Os salgueiros se inclinam para a água. Parecem mulheres de cabelos verdes se olhando no espelho do rio. Os olmos estão perfilados e o vento sacode a sua folhagem rendilhada. Os juncos das margens parecem a cabeleira eriçada do sacristão da igreja. Há uma quantidade enorme de plantas aquáticas que Joana não sabe como se chamam. Papai lhe disse o nome de muitas, mas ela esqueceu...
Joana respira forte. Ajoelha-se à beira do rio, molha os dedos nágua e depois encosta-os na testa. Como está fresca a água do rio!
Lá no fundo passam peixes esverdeados. Joana sabe que são trutas.
Papai Jacques às vezes vai pescar; no jantar servem truta frita. Joana tem muita pena dos peixes. Não deviam tirar os coitadinhos de dentro dágua...
Todos os bichos — os peixes, os veados, os porcos, as vacas, as pombas e os burrinhos — são filhos de Deus. Um pai gosta de ver os filhos maltratados? Não gosta. Logo: Deus não pode gostar de ver os peixes irem para a panela de mamãe Isabel. A última vez que viu uma truta no prato, Joana não quis comer. De pena, de pura pena.
Joana se levanta e continua a andar. A estradinha que leva até a casa de Hauviette se mete moitas adentro, brincando de esconde-esconde. Os passarinhos cantam nas árvores. E Joana tem a impressão de que todas as andorinhas, todos os pardais e todos os rouxinóis a conhecem de vista.
Quando eles cantam as suas cantigas que os homens não entendem, Joana julga saber o que os passarinhos dizem. Agora eles estão perguntando: “Joana, aonde vais?”, E ela, sorrindo, responde assim: “Vou ver a minha amiguinha Hauviette. Gosto muito dela. Não temos a mesma idade, não, senhores! Eu tenho nove anos e ela, cinco. Mas não faz mal...
Hauviette é muito boazinha e eu gosto dela!”.
Joana segue o seu caminho, sempre pela beira do rio. Lá na outra margem está a aldeia de Maxey. A gente daqui enxerga os seus telhados vermelhos, os seus moinhos com as grandes pás rodopiando ao vento da manhã.
Joana torna a parar para pensar numa coisa muito triste. A aldeiazinha de Maxey faz com que ela se lembre dos irmãos. Jacquemin mora longe, em Sermaize, com tio Henrique, cura da paróquia. Mas João e Pedrinho frequentam a escola de Maxey e quase sempre voltam com as roupas esfarrapadas, porque brigam com os outros rapazes da aldeia vizinha. Brincam de guerra. Atiram-se pedras, atracam-se a socos.
O rosto de Joana fica sombrio ao pensar nessas coisas. Papai já explicou tudo. Os habitantes de Maxey são partidários dos borgonheses, isto é: são do lado do duque de Borgonha. Os de Domrémy, onde Joana mora com sua gente, são do lado dos armagnacs.
Joana não chega a compreender bem essas lutas dos grandes. Sabe que são dois partidos compostos de homens ferozes que vivem sempre em guerras. E os meninos — maluquinhos! — discutem e lutam também. Não há roupa nem calçado que chegue para João e Pedrinho.
Mamãe se queixa muito. Papai já prometeu uma surra a cada um se eles continuam a brigar...
Joana vai pensando que a sua querida aldeia de Domrémy, cujo chão ela agora pisa com tanto amor, podia ser um paraíso se não fossem as guerras. A vida vai correndo muito bem, mas de repente se ouve um barulho, uma gritaria, um tinido de ferros e fica alarmada... Os bichos começam a gritar nos quintais, os burros zurram, as vacas mugem, os galos fazem um cocoricó assustado... As pessoas saem pálidas de suas casas para ver o que aconteceu. Saem e encontram homens de armas, com couraças rebrilhantes, capacetes de aço, lanças, espadas, escudos... E são homens brutos, dizem palavrões feios, comem muito, bebem canecões enormes de vinho e não pagam nada. Depois vão embora levando
o gado pela frente, o gado que roubaram aos pobres camponeses de Domrémy! E ainda todos dão graças a Deus quando os brutos não atravessam com suas lanças pontudas o corpo de algum habitante da aldeia.
Joana tem certeza de que Deus não pode gostar dessas brutalidades. E todas as noites ela reza as orações que mamãe Isabel lhe ensinou. O Pai‑Nosso, a Salve‑Rainha, o Credo... Reza e pede a Deus que dê juízo e bom coração aos homens. Aos armagnacs, aos borgonheses, a todos, todos...
Joana chega à casa de Hauviette. A amiguinha já está à porta acenando para ela com a sua mãozinha miúda como um passarinho.
Abraçam-se.
— Como vais? — pergunta Joana.
— Vou bem — responde Hauviette.
A vozinha dela é fina e fraca, fraca e suave como o marulho do rio que Joana ouvia quando estava no berço. Hauviette tem cabelos louros e olhos azuis.
— Vim te buscar para um passeio. 
Hauviette bate palmas.
— Que bom! Espera aqui que eu vou pedir à mamãe.
Vai para dentro e volta depressa, pulando de contente.
De mãos dadas as duas amiguinhas se vão. A cabeça de Hauviette mal chega aos ombros de Joana. E é um contraste vivo o vestido vermelho da mais velha com o vestido branco da outra.
— Aonde é que vamos? — pergunta Joana.
— Vamos ver o castelo da ilha.
Vão.
Bem no centro duma ilha formada por dois braços do Mosa, ergue-se um castelo de paredes enegrecidas e altas torres. Ao redor dele, abre-se uma fossa funda. Não mora ninguém no casarão. Joana sabe que é uma fortaleza abandonada. Contam histórias de fantasmas...
Hauviette olha com olhinhos assustados.
— Joana, tu eras capaz de entrar no castelo de noite?
— Eu? Era.
— Sozinha?
— Sozinha.
Hauviette faz uma carinha de incredulidade.
— Não tinhas medo?
— Não. Quem acredita em Deus não tem medo de nada. Cada pessoa tem um anjo da guarda que anda sempre atrás dela."
Erico Verissimo
A vida de Joana d’Arc

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